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quarta-feira, setembro 3

Nichos de argumentação 

É mais fácil um rico entrar no reino dos céus do que ver alguém reconhecer publicamente que errou. O “mea culpa” está praticamente extinto, o “tua culpa” é ubíquo. Com a argumentação dos defensores da guerra praticamente em fanicos, é curioso ver em que nichos eles se refugiam para não terem de reconhecer que se enganaram.

Na sua coluna Política à Portuguesa no Expresso deste fim-de-semana, JAS fala das lágrimas de crocodilo que ”certa esquerda” alegadamente verteu por Sérgio Vieira de Mello. Diz: “A esquerda não invocou a morte de Sérgio Vieira de Mello por razões piedosas – agitou-a como bandeira para condenar a ocupação americana. Nesta medida – e dito cruamente – essa morte até conveio a essa esquerda. Por isso, muitas das lágrimas que chorou foram lágrimas de crocodilo”.

Não me interessa discutir se as lágrimas foram de crocodilo ou não e se a esquerda é assim ou assado. É um assunto de tal modo pequeno perante o contexto do descalabro que se passa no Iraque (o texto de JAS foi escrito no dia seguinte a um atentado em Bagdad ter morto mais de 100 pessoas) que, francamente, estou-me marimbando para piquinhices dessas. Mas não deixo de notar que o nicho de argumentação que JAS encontrou, a morte de Sérgio Vieira de Mello, parece ser-lhe muito conveniente para picar a incerta “certa esquerda” de que fala.

Irrita-me este debate simplista pica-esquerda, pica-direita, como se as pessoas vissem a realidade apenas com o olho esquerdo ou com o olho direito, como se o mundo fosse um pisca-pisca. Poupem-me, eu tenho esquerda e direita ao mesmo tempo e não me revejo em nenhum dos lados isoladamente. Para analisar este mundo é preciso ver a realidade toda, objectivamente, procurando compreender a complexidade do todo mas tendo em conta a importância de certos pormenores, destrinçando a informação da desinformação sempre que possível. É obra. Por isso, dispenso visões parciais com pala no olho ou enviesadas sempre para o mesmo lado.

Sintomático da ginástica acrobática a que se tem de submeter a argumentação de JAS é a forma como ataca a ideia de que “se os americanos não se tivessem metido no Iraque nada disto teria acontecido”. Nisto assemelha-se a JPP, procurando ilibar quem abriu a caixa de Pandora. Ele encontra um paralelismo entre a “libertação” do Iraque e a independência de Angola (por causa das mortes da guerra civil), perguntando: “isso levou a esquerda a condenar a independência de Angola?”. Curioso é que JAS só veja este paralelismo e não repare em todos os “perpendicularismos”, obliquidades e inversões de sentido, como sejam a tentativa de colonização de um lado e o processo de descolonização do outro, a imposição de um regime por potências externas à revelia do direito internacional versus as movimentações de diferentes facções internas de um país para impor um regime. De resto, toda a argumentação conduz à tentativa de desculpar um erro com outro erro, algo sempre de deplorar (não estou a dizer que a independência de Angola foi um erro: estou a dizer que houve erros que levaram à guerra civil, mas eles não podem ser directamente imputáveis à legítima ambição de independência do povo angolano!).

Na segunda parte da sua crónica, JAS diz que não tem “muitas dúvidas de que, nesta questão [das armas de destruição maciça] Bush e Blair mentiram – ou, pelo menos, empolaram intencionalmente as informações disponíveis”. Sem que esta enormidade o perturbe, JAS continua dizendo que “esse foi apenas o pretexto para a invasão. A sua “razão formal”. A questão essencial teve (e continua a ter) que ver com o terrorismo”. Uau, que fleuma!

JAS continua: “Foi isto – com uma simplicidade que é a sua fraqueza e a sua força – que os Estados Unidos fizeram: atacados brutalmente no 11 de Setembro, foram dar luta aos terroristas no seu terreno. Terão sucesso? Ninguém o poderá dizer. Mas qual era a alternativa? Ficarem de braços cruzados, à espera que o Empire State Building e a Estátua da Liberdade fossem destruídos?”.

JAS aceita que chefes de estado das maiores potências mundiais mintam aos seus povos ou empolem a realidade tanto quanto o necessário para se poderem vingar do 11 de Setembro? Rica democracia esta, que habitua ou ensina os eleitores a aceitarem que os seus governantes lhes mintam!

Desde o início que me parece evidente que não se pode resolver assim o problema do terrorismo. E agora, que não podemos voltar atrás nem parar, entrámos na grande escalada, onde o terrorismo gera respostas precipitadas por parte dos EUA em desrespeito da soberania dos povos, que por sua vez gera reacção a essas respostas com amplificação do terrorismo, novos problemas de segurança com novos tipos de actos terroristas, novas soluções de segurança com mais nervosismo e paranóia, extremismo e crispação de grande parte da população, novas guerras, novas armas, novos grupos terroristas e novos Bin Laden, numa mistura explosiva com a era tecnológica em que vivemos. A espiral do terrorismo gera também uma maior vontade de votar em quem dê segurança a todo o custo, mesmo que com sacrifício de direitos básicos e da verdade, criando condições para que a escalada possa ser modulada pelos próprios neo-conservadores. Gera ainda uma desmesurada compreensão por parte de “certos” formadores de opinião e directores de jornais, que pelos vistos acham que reagir com cautela e no âmbito do direito internacional e da ONU é estar “de braços cruzados”, como diz JAS. E assim, de braços a lutar, não estaremos nós na mesma à espera que o Empire State Building e a Estátua da Liberdade sejam destruídos?

Chegámos finalmente à era da compreensão do vale-tudo-até-tirar-olhos. O combate ao terrorismo justifica fechar os olhos a todos os atropelos. É aí que está o perigo desta escalada, não vêem? Têm os dois olhos abertos?

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