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terça-feira, março 23

País de sacanas? 

É muito fácil criticar. Há até na crítica um certo sentimento de irmandade, solidariedade e compreensão mútuas. As pessoas encontram-se na crítica, como se encontram com os amigos: de forma acrítica. Mas não se encontram nas soluções para os problemas e termina aí a ilusão da aparente comunhão de ideias. Jorge de Sena a todos zurze com violência, mas, embora pareça querer ficar de fora, como que a dizer "eu sou diferente", não o consegue (ou não quere). É isso o mais humano e genial deste poema típico de crítica consensual...


Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena (1973)

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