segunda-feira, março 31
Química na Bíblia
A química é uma actividade humana que aparece reflectida em algumas passagens bíblicas, em especial no Antigo Testamento. O que é natural, pois o povo judaico esteve durante muito tempo no Egipto, país em que se cultivava a química e as suas aplicações tecnológias. Não é minha intenção escrever uma espécie de versão para blogues da Física do Cristianismo, mas apenas assinalar algumas passagens da Bíblia nas quais há, ou parece haver, referências à química ou a processos químicos.1 Algumas dessas referências são metafóricas, outras bastante crípticas e algumas são simplesmente associações que me parecem demasiado fantasistas. Em particular, as metafóricas são muito interessantes, pois indicam um uso da química que seria entendido pelos leitores dos textos sagrados.
Uma ligação à química que me parece algo exagerada, mas que é muito citada,2 é o adoçamento das águas por Moisés lançando-lhes um pedaço de madeira (Êxodo 15:22-25). Tratar-se-ia de uma forma de purificação da água por troca iónica.2 É interessante notar que Ben Sirac, no Eclesiastico, quando fala da Medicina e doença, se refere ao adoçamento das águas como sendo uma aplicação natural. A citação é bastante moderna no que concerne à química médica e farmacêutica (incluí entre parêntesis algumas notas para ajudar a compreensão):
Da terra o Senhor criou os símplices [ingredientes dos medicamentos], o homem sensato não os despreza. As águas não foram adoçadas com um lenho, para mostrar a sua virtude [dos símplices]? Ele é que deu ciência aos homens, a fim de que se gloriem com as suas obras poderosas. Por eles [os símplices], ele [o médico] curou e aliviou, o famacêutico fez as suas misturas.3
Referências as processos químicos antigos de purificação e identificação dos metais preciosos pelo fogo surgem em Zacarias (Zac 13:9) e Ezequiel (Ez 22:20-21), como uma metáfora bastante óbvia.
Embora não sejam aplicações químicas, há passagens na Bíblía que refletem efeitos de produtos químicos, nomeadamente de origem natural. Por exemplo, uma passagem do Livro dos Números (Num 11:31-33) é por vezes citada como sendo um envenamento por coniína, o alcalóide neurotóxico da cicuta (a mesma planta que foi usada para envenenar Sócrates). Finalmente, já um pouco no campo da física, não resisto a referir a interpretação da Arca da Aliança como um condensador tipo garrafa de Leyden, que sendo quase de certeza uma fantasia, não é de todo inverosímil. Basta ler a descrição detalhada da Arca (Ex 25:10-15) e a passagem da morte inexplicável de um homem apenas porque tocou na Arca quando esta estava a cair de um carro de bois (2Sam 6).
1Quem estiver interessado num tipo de análises, ao mesmo tempo pseudo-científicas e pseudo-religiosas, em que se pretende ver a Bíblia como um livro científico, o que para mim até poderá ser visto como uma redução inaceitável da dimensão da Bíblia, é só procurar na internet, que não falta.
2ver, por exemplo, C.A. Lucy J. Chem. Educ. 77 (2000) 459 e as suas referências. Como este texto não é uma publicação académica vou limitar as referências ao mínimo.
3Eclesiástico 38:5-7, A Bíblia de Jerusalém (nona edição revista, 1985, Paulus, S. Paulo, Brasil). Consultei, para as citações bíblicas, esta magnífica edição da Bíblia, recheada de notas e textos introdutórios, que me foi oferecida pelo tio Padre Alberto, missionário e professor em vários lugares do mundo que recentemente comemorou as suas bodas de ouro sacerdotais.
Imagem daqui.
domingo, março 30
Miniaturização, levitação e homens em espelho
A miniaturização completa e simples de um ser humano conduziria a estruturas moleculares que seriam impossíveis. De facto, somos feitos de materiais que têm uma estrutura molecular bem definida. Pensemos só na água, já que cerca de 70% do nosso corpo é água: tanto uma molécula de água tem uma geometria de equilíbrio bem definida, como um conjunto grande de moléculas de água ocupa um determinado volume que varia muito pouco com as temperaturas e pressões a que estamos normalmente sujeitos (de facto as que podemos suportar!). Nem as moléculas de água do nosso corpo poderiam ficar mais pequenas, nem todo o conjunto delas poderia ocupar um volume significativamente menor, sem que o organismo ficasse sujeito a condições incompatíveis com a vida. E uma alteração radical da estrutura molecular do corpo do organismo miniaturizado seria possível? Bem, mesmo que tal fosse possível, como poderia ser garantido que se tratava do mesmo organismo, uma vez que não teria a mesma estrutura molecular? Além disso o volume ocupado pelo material genético, também não poderia ser muito reduzido, nem claro, o volume ocupado pelas células. Finalmente, relações menores entre superfície e volume trariam alterações enormes no metabolismo e dificuldades inultrapassáveis de deslocação e sustentação, como é bem explicado pela Ana Nunes.
E quanto a vencer os efeitos da gravidade, ou seja levitar, sem gastar toneladas de combustível como nos foguetões? Deixemos por agora os neutrinos de Frank Tipler de parte. Cyrano de Bergerac leva o seu herói a fazer a Viagem à Lua sem grande esforço, mas para essa viagem paradoxal não se procura uma explicação científica. Com H. G. Wells, em O Primeiro Homem na Lua, surge a ideia aparentemente científica de um material, a cavorite, que fosse opaco à gravidade. Obviamente, tal material viola as leis da termodinâmica, pois poderia ser usado como fonte de energia a partir do nada! Bastava levitar um material e em seguida deixá-lo cair, aproveitando essa queda para gerar trabalho. Clarke, em as Visões do Futuro refere que tal material seria tão paradoxal como a possibilidade de fazer um recipiente para um solvente universal. Restam os neutrinos, mas eu vou continuar a resistir-lhes, por agora!
Quanto ao homem em espelho, que Clarke também refere, é uma situação mais subtil. Um homem que por ter vindo de uma outra dimensão (seja lá o que isso for), ou por ter sido submetido a um qualquer processo de alteração molecular, no qual as suas moléculas com actividade óptica ficassem invertidas em relação ao normal, o seu problema menor seria a alcaravia lhe saber a hortelã-pimenta e vice versa. O mais provável seria ter de ter uma dieta especial para não morrer de fome ou envenenado por os seus processos bioquímicos não estarem adaptados aos isómeros ópticos dos alimentos do mundo normal.
Imagens daqui e daqui.
E quanto a vencer os efeitos da gravidade, ou seja levitar, sem gastar toneladas de combustível como nos foguetões? Deixemos por agora os neutrinos de Frank Tipler de parte. Cyrano de Bergerac leva o seu herói a fazer a Viagem à Lua sem grande esforço, mas para essa viagem paradoxal não se procura uma explicação científica. Com H. G. Wells, em O Primeiro Homem na Lua, surge a ideia aparentemente científica de um material, a cavorite, que fosse opaco à gravidade. Obviamente, tal material viola as leis da termodinâmica, pois poderia ser usado como fonte de energia a partir do nada! Bastava levitar um material e em seguida deixá-lo cair, aproveitando essa queda para gerar trabalho. Clarke, em as Visões do Futuro refere que tal material seria tão paradoxal como a possibilidade de fazer um recipiente para um solvente universal. Restam os neutrinos, mas eu vou continuar a resistir-lhes, por agora!
Quanto ao homem em espelho, que Clarke também refere, é uma situação mais subtil. Um homem que por ter vindo de uma outra dimensão (seja lá o que isso for), ou por ter sido submetido a um qualquer processo de alteração molecular, no qual as suas moléculas com actividade óptica ficassem invertidas em relação ao normal, o seu problema menor seria a alcaravia lhe saber a hortelã-pimenta e vice versa. O mais provável seria ter de ter uma dieta especial para não morrer de fome ou envenenado por os seus processos bioquímicos não estarem adaptados aos isómeros ópticos dos alimentos do mundo normal.
Imagens daqui e daqui.
sábado, março 29
Teletransporte, homens invisíveis, pessoas miniaturizadas e outros prodígios
Ainda inspirado por Arthur C. Clarke, algumas reflexões sobre visões, prodígios e fantasias.
Em geral, as pessoas não se dão conta de que a implementação técnica mais simples do teletransporte corresponderia a um método de duplicação. De facto, podemos imaginar enviar a uma velocidade enorme informação genética e molecular que seria reproduzida também a grande velocidade. Mas o que aconteceria ao original? Teria de ser destruido? Segundo Clarke o desenvolvimento de uma tecnologia assim seria útil para criar duplos, mas a quantidade de informação a enviar seria muitissimo grande e teríamos muitos problemas filosóficos e situações paradoxais. Como seriam teletransportados os pensamentos, as memórias e principalmente a noção de de ser um ser único e irrepetível? A fantasia do teletransporte surge, sem qualquer problema associado, nas séries e filmes Star Trek, mas, por exemplo, no filme A Mosca de David Cronemberg, já somos confrontados com alguns dos seus problemas. Uma mosca entra por acaso no aparelho de teletransporte e, resultado da mistura da informação genética enviada, segue-se uma repetição tecnológica da Metamorfose do Kafka. Penso que os paradoxos da duplicação e da unicidade do ser humano são muito mais difíceis de resolver que o problema tecnológico do envio da informação molecular.
O Homem Invisível de H. G. Wells fica invisível por ter ficado coberto com uma tinta especial. À partida, poderemos imaginar uma tinta que nos tornasse como um espelho, o que poderia fornecer algum tipo de camuflagem, mas não a invisibilidade. A verdadeira invisibilidade poderia ser obtida se a luz nos pudesse atravessar, o que implicaria, no entanto, uma alteração tão grande da nossa estrutura molecular, na qual nos tornaríamos como um vidro, que seria incompatível com continuar vivo. Uma forma de evitar isto e mesmo assim obter a invisibilidade, seria o material ou tinta conduzir a luz da frente para trás e vice-versa. Estava para escrever claro está que tal seria impossível por decerto violar várias leis da física, quando, procurando imagens sobre este assunto, encontrei um excelente post do Carlos Fiolhais sobre o homem invisível, que refere as propostas de John Pendry para a realização prática de um material com as características de permitir a invisibildade! Bem, de qualquer forma tanto o homem espelho como o homem invisível teriam o problema dos seus olhos não poderem ser cobertos com o tal material, caso contrário ficariam cegos...
Da miniaturização, que é impossível por implicar alterações moleculares também impossíveis e outros problemas menos óbvios, falarei depois. No entanto, por exemplo, no Solaris de Stanislaw Lem são sugeridas algumas pistas de ficção científica, as quais nos levam também à duplicação e à invisibilidade, mas com materiais de estrutura molecular diferente e com certeza não humanos. E que melhores materiais para estas coisas que os neutrinos? Os mesmos neutrinos, que Frank Tipler refere na Física do Cristianismo para explicar a levitação. Bem, e a levitação leva-nos de novo a H. G. Wells e a O primeiro homem na lua...
Também, enquanto procurava imagens no google, encontrei este interessantíssimo curso (foi daí que tirei a imagem do teletransporte na Star Trek).
Em geral, as pessoas não se dão conta de que a implementação técnica mais simples do teletransporte corresponderia a um método de duplicação. De facto, podemos imaginar enviar a uma velocidade enorme informação genética e molecular que seria reproduzida também a grande velocidade. Mas o que aconteceria ao original? Teria de ser destruido? Segundo Clarke o desenvolvimento de uma tecnologia assim seria útil para criar duplos, mas a quantidade de informação a enviar seria muitissimo grande e teríamos muitos problemas filosóficos e situações paradoxais. Como seriam teletransportados os pensamentos, as memórias e principalmente a noção de de ser um ser único e irrepetível? A fantasia do teletransporte surge, sem qualquer problema associado, nas séries e filmes Star Trek, mas, por exemplo, no filme A Mosca de David Cronemberg, já somos confrontados com alguns dos seus problemas. Uma mosca entra por acaso no aparelho de teletransporte e, resultado da mistura da informação genética enviada, segue-se uma repetição tecnológica da Metamorfose do Kafka. Penso que os paradoxos da duplicação e da unicidade do ser humano são muito mais difíceis de resolver que o problema tecnológico do envio da informação molecular.
O Homem Invisível de H. G. Wells fica invisível por ter ficado coberto com uma tinta especial. À partida, poderemos imaginar uma tinta que nos tornasse como um espelho, o que poderia fornecer algum tipo de camuflagem, mas não a invisibilidade. A verdadeira invisibilidade poderia ser obtida se a luz nos pudesse atravessar, o que implicaria, no entanto, uma alteração tão grande da nossa estrutura molecular, na qual nos tornaríamos como um vidro, que seria incompatível com continuar vivo. Uma forma de evitar isto e mesmo assim obter a invisibilidade, seria o material ou tinta conduzir a luz da frente para trás e vice-versa. Estava para escrever claro está que tal seria impossível por decerto violar várias leis da física, quando, procurando imagens sobre este assunto, encontrei um excelente post do Carlos Fiolhais sobre o homem invisível, que refere as propostas de John Pendry para a realização prática de um material com as características de permitir a invisibildade! Bem, de qualquer forma tanto o homem espelho como o homem invisível teriam o problema dos seus olhos não poderem ser cobertos com o tal material, caso contrário ficariam cegos...
Da miniaturização, que é impossível por implicar alterações moleculares também impossíveis e outros problemas menos óbvios, falarei depois. No entanto, por exemplo, no Solaris de Stanislaw Lem são sugeridas algumas pistas de ficção científica, as quais nos levam também à duplicação e à invisibilidade, mas com materiais de estrutura molecular diferente e com certeza não humanos. E que melhores materiais para estas coisas que os neutrinos? Os mesmos neutrinos, que Frank Tipler refere na Física do Cristianismo para explicar a levitação. Bem, e a levitação leva-nos de novo a H. G. Wells e a O primeiro homem na lua...
Também, enquanto procurava imagens no google, encontrei este interessantíssimo curso (foi daí que tirei a imagem do teletransporte na Star Trek).
Arthur C. Clarke: visões do futuro
Há cerca de duas semanas andava à procura de pistas para uma conferência sobre química e literatura e encontrei um livro de Arthur C. Clarke que nunca tinha lido, Visões do futuro, o qual devorei num instante. Neste livro Clarke refere uma quantidade de cientistas que falharam as suas previsões pessimistas e enuncia as suas famosas três leis:
1. Quando um cientista distinto mas idoso diz que algo é possível, tem quase certamente razão. Quando diz que isso é impossível, está muito provavelmente errado.
2. A única forma de descobrir os limites do possível é ultrapassá-los até ao impossível.
3. Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
Entretanto, embora nas suas previsões lá para o ano 2100 se vá chegar à imortalidade, Clarke não pôde esperar mais e morreu. Como era um optimista vai com certeza continuar vivo!
quinta-feira, março 27
Descobrir as diferenças
Entre o monge de ouvidos tapados, olhos vendados, boca cerrada e coração fechado para o exterior e o moderno que ouvindo música muito alta não escuta o mundo, que tudo vendo em nada repara, que comunicando sem cessar, nada diz. O que os une é o fechamento e uma certa ideia de desperdício humano e alienação. O que os separa é o desperdício insensato de recursos e a falta de sustentabilidade ecológica. De qualquer forma, parafraseando Ranald Wright, estamos a introduzir software novo num hardware que tem 50000 anos.
terça-feira, março 25
da utilidade de ter duas palavras
Pode perder-se a crença mas manter-se a fé. Pode fazer-se o contrário ou o oposto. E se não se quer chegar ao sexo poderemos ficar pelo género (embora não seja tão gostoso). E se uma coisa for legal pode mesmo assim ser ilegítima. E se não for eficiente pode ser eficaz. E se estamos fartos de estratégias, porque precisamos de tácticas. E se estamos parados porque não ficamos imóveis?
quinta-feira, março 6
The Birds
segunda-feira, março 3
Correlações
Um estudo, divulgado hoje, afirma que desde que foi despenalizada a ivg diminuiu a venda de pílulas do dia seguinte. E...?
É verdadeira a afirmação “foi despenalizada a ivg”, é supostamente verdadeira a afirmação “diminuiu a venda de pílulas do dia seguinte”, mas uma é o efeito da outra? Também podemos, por exemplo, afirmar que o verão passado foi menos quente e que diminuiu a venda de pílulas do dia seguinte e, obviamente, apesar das duas afirmações poderem ser verdadeiras é difícil acreditar que uma seja causada pela outra. As mulheres pensarão, para quê ir gastar agora dinheiro na pílula, se nem sequer sei se estou grávida, e se mais tarde posso fazer um aborto? Não parece muito plausível, pois não?
É verdadeira a afirmação “foi despenalizada a ivg”, é supostamente verdadeira a afirmação “diminuiu a venda de pílulas do dia seguinte”, mas uma é o efeito da outra? Também podemos, por exemplo, afirmar que o verão passado foi menos quente e que diminuiu a venda de pílulas do dia seguinte e, obviamente, apesar das duas afirmações poderem ser verdadeiras é difícil acreditar que uma seja causada pela outra. As mulheres pensarão, para quê ir gastar agora dinheiro na pílula, se nem sequer sei se estou grávida, e se mais tarde posso fazer um aborto? Não parece muito plausível, pois não?
Etiquetas: estudos