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segunda-feira, dezembro 29

Alguns contributos para a paz e tranquilidade nas estradas 

O Nuno apresentou com muita clareza nos posts anteriores praticamente todos os argumentos racionais contra a velocidade. Vou tentar dizer mais algumas coisas sobre a racionalidade do comportamento e argumentos dos condutores, nos quais também me incluo.

Na cidade, em particular, é uma estupidez conduzir com velocidade. Pode demorar-se 23 segundos para fazer 500 metros a 80 km por hora para depois estar 15 minutos para fazer outros 500 metros num engarrafamento e a média das velocidades fica 41 km por hora. É preferível andar a uma velocidade razoável e conduzir de forma descontraída, embora atenta, pois os engarrafamentos são muitas vezes provocados pelos excessos dos condutores com pressa. E, de facto, dizem as estatísticas a velocidade média numa grande cidade é, em geral, inferior a 20 km por hora. Além disso, em geral, ultrapassa-se de forma tresloucada um condutor mais lento para se ficar dois ou três carros mais à frente na fila. Basta observar o trânsito com atenção para verificar isso. Pressa para quê?

E esta discussão até que seria fácil se se tratasse apenas de um problema de argumentação racional. Mas do que se trata aqui é da vertigem e da adrenalina, do Ilix de que fala Roger Caillois [1]. Daquilo que liga a criança que gira até ficar tonta ao adulto que acelera na auto-estrada: o prazer do perigo. Os vendedores de carros sabem-no bem e por isso não vendem automóveis mas sim, potência, condução desportiva, acelerações dos zeros aos cem, ao mesmo tempo que prometem segurança. O prazer do perigo, a vertigem da velocidade pode tornar-se numa espécie de vício. E quando se trata de vícios surgem as explicações supostamente racionais. Lembro-me de as ter ouvido a propósito dos perigos do uso do cinto de segurança há uns anos atrás.

Miguel Sousa Tavares (MST) traz-nos o cansado argumento do sono. O Nuno já mostrou, e muito bem, levando a discussão para um plano mais geral e racional, que MST não tem razão. Por isso, talvez nem valesse a pena argumentar directamente contra o argumento do sono, mas, como este argumento é recorrente, talvez valha a pena fazê-lo. Antes de mais, devo dizer que nas auto-estradas da Suíça circulei em filas quase compactas a 120 km por hora e não me lembro de ter tido sono algum. Pelo contrário, a circulação era fluída por não haver, como em Portugal, uma mistura caótica de aceleras que circulam muitas vezes pela esquerda e que ocasionalmente ultrapassam pela direita. Por outro lado, deve clarificar-se que o argumento do sono se baseia na extrapolação de estudos sobre a diminuição da atenção durante a realização de actividades monótonas. E se a recomendação de se fazer pausas na condução pelo menos de duas em duas horas faz todo o sentido, o argumento do sono é absurdo pois a melhor forma de combater o cansaço é certamente repousar e não acelerar o carro. Finalmente, um argumento idêntico pode ser apresentado acerca da velocidade e da condução não monótona. Com a euforia e a vertigem provocadas pela velocidade e pelas manobras bruscas, as quais só podem aumentar o cansaço e o stress, muitos condutores poderão deixar de sentir o cansaço natural que os levaria a parar para descansar, e poderão atingir um estado de delírio e perda de noção da realidade, o que é bem mais perigoso.

E já que falo de delírios: devemos combatê-los. Os super-condutores incansáveis e resistentes ao álcool que que muitos portugueses julgam ser é desmentido pelos números da nossa sinistralidade rodoviária.

Em França, na famosa «estrada da morte» dos emigrantes portugueses, lembro-me de ter ficado impressionado com as silhuetas negras, representando cada uma um morto: as crianças como silhuetas mais pequenas pela mão das silhuetas maiores. Aqui em Portugal ainda é costume deixar ramos de flores e alminhas nos locais dos acidentes. No Alentejo vêem-se dezenas. Miguel Sousa Tavares, que vai lá caçar, já os deve ter visto nas bermas e atados às árvores. Mas, para estas coisas, tal como com os avisos no tabaco, sempre se inventam tapa-olhos.

Dizem as estatísticas que os portugueses são pacíficos, mas na estrada, protegidos por uma carapaça metálica, parece que se modificam. São fanfarrões, desconexos e imprevisíveis. Talvez seja um dos traços infantis da sua personalidade, que as estatísticas também dizem existir [2]. E tal como com as crianças, a educação cívica e a repressão têm de ser coerentes. Não se pode dizer uma coisa e fazer outra. Os governantes deveriam ser os primeiros a dar o exemplo. Os instrutores das escolas de condução também. Os pais também. Todos deveriamos ser exemplos para todos.

Por outro lado, a polícia deveria passar multas por excesso de velocidade sempre e não só às vezes. Deveriam existir câmaras de vigilância claramente assinaladas nas estradas e nas ruas mais problemáticas, certamente mais do que nas escolas e parques públicos cada vez mais transformados em panópticos. Tal como não aceitamos que os cidadãos se passeiem com metralhadoras ou granadas, não podemos aceitar pessoas a conduzir como assassinos. Se nos aeroportos aceitamos todo o tipo de vigilâncias porque não as poderemos aceitar nas estradas?

Em vez de delirarmos que os outros condutores e a polícia nos perseguem e nos querem aborrecer por que não sonharmos que será com a nossa tranquilidade e o nosso pequeno e individual esforço que haverá paz nesta guerra civil das estradas portuguesas.


[1] Os jogos e os homens Roger Caillois (Cotovia, Lisboa,1990).
[2] Portugal Europeu? José Gabriel Pereira Bastos (Celta, Oeiras, 2000).

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